Encíclica Rerum Novarum de Leão XIII(1), - Biblioteca - Biblioteka - Library, - EBOOKs PORTUGUÊS
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//-->A Santa SéCARTA ENCÍCLICA«RERUMNOVARUM»DO SUMO PONTÍFICEPAPA LEÃO XIIIA TODOS OS NOSSOS VENERÁVEISIRMÃOS, OS PATRIARCAS,PRIMAZES, ARCEBISPOSE BISPOS DO ORBE CATÓLICO,EM GRAÇA E COMUNHÃOCOM A SÉ APOSTÓLICASOBRE A CONDIÇÃO DOS OPERÁRIOS INTRODUÇÃO1. A sede de inovações, que há muito tempo se apoderou das sociedades e as tem numa agitação febril, devia, tarde oucedo, passar das regiões da política para a esfera vizinha da economia social. Efectivamente, os progressosincessantes da indústria, os novos caminhos em que entraram as artes, a alteração das relações entre os operários e ospatrões, a influência da riqueza nas mãos dum pequeno número ao lado da indigência da multidão, a opinião enfim maisavantajada que os operários formam de si mesmos e a sua união mais compacta, tudo isto, sem falar da corrupção doscostumes, deu em resultado final um temível conflito.Por toda a parte, os espíritos estão apreensivos e numa ansiedade expectante, o que por si só basta pa ra mostrarquantos e quão graves interesses estão em jogo. Esta situação preocupa e põe ao mesmo tempo em exercício o géniodos doutos, a prudência dos sábios, as deliberações das reuniões populares, a perspicácia dos legisladores e osconselhos dos governantes, e não há, presentemente, outra causa que impressione com tanta veemência o espíritohumano.É por isto que, Veneráveis Irmãos, o que em outras ocasiões temos feito, para bem da Igreja e da salvação comum doshomens, em Nossas Encíclicas sobreasoberania política, a liberdade humana, a constituição cristã dos2Estados (1) e outros assuntos análogos, refutando, segundo Nos pareceu oportuno, as opiniõeserróneas e falazes, o julgamos dever repetir hoje e pelos mesmos motivos, falando-vos daCondição dos Operários. Já temos tocado esta matéria muitas vezes, quando se Nos temproporcionado o ensejo; mas a consciência do Nosso cargo Apostólico impõe-Nos como umdever tratá-la nesta Encíclica mais explicitamente e com maior desenvolvimento, a fim de pôr emevidência os princípios duma solução, conforme à justiça e à equidade. O problema nem é fácilde resolver, nem isento de perigos. E difícil, efectivamente, precisar com exactidão os direitos eos deveres que devem ao mesmo tempo reger a riqueza e o proletariado, o capital e o trabalho.Por outro lado, o problema não é sem perigos, porque não poucas vezes homens turbulentos eastuciosos procuram desvirtuar-lhe o sentido e aproveitam-no para excitar as multidões efomentar desordens.Causas do conflito2. Em todo o caso, estamos persuadidos, e todos concordam nisto, de que é necessário, commedidas prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a queeles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida. O séculopassado destruiu, sem as substituir por coisa alguma, as corporações antigas, que eram paraeles uma protecção; os princípios e o sentimento religioso desapareceram das leis e dasinstituições públicas, e assim, pouco a pouco, os trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-sevisto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça dumaconcorrência desenfreada. A usura voraz veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitasvezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser praticada sob outra forma por homensávidos de ganância, e de insaciável ambição. A tudo isto deve acrescentar-se o monopólio dotrabalho e dos papéis de crédito, que se tornaram o quinhão dum pequeno número de ricos e deopulentos, que impõem assim um jugo quase servil à imensa multidão dos proletários.A solução socialista3. Os Socialistas, para curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra os quepossuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que osbens dum indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua administração deve voltarpara - os Municípios ou para o Estado. Mediante esta transladação das propriedades e esta igualrepartição das riquezas e das comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser capazde pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Pelo contrário, ésumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado etender para a subversão completa do edifício social.A propriedade particular34. De facto, como é fácil compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quemexerce uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador, é conquistar um bem quepossuirá como próprio e como pertencendo-lhe; porque, se põe à disposição de outrem as suasforças e a sua indústria, não é, evidentemente, por outro motivo senão para conseguir com quepossa prover à sua sustentação e às necessidades da vida, e espera do seu trabalho, não só odireito ao salário, mas ainda um direito estrito e rigoroso para usar dele como entender. Portanto,se, reduzindo as suas despesas, chegou a fazer algumas economias, e se, para assegurar a suaconservação, as emprega, por exemplo, num campo, torna-se evidente que esse campo não éoutra coisa senão o salário transformado: o terreno assim adquirido será propriedade do artistacom o mesmo título que a remuneração do seu trabalho. Mas, quem não vê que é precisamentenisso que consiste o direito da propriedade mobiliária e imobiliária? Assim, esta conversão dapropriedade particular em propriedade colectiva, tão preconizada pelo socialismo, não teria outroefeito senão tornar a situação dos operários mais precária, retirando-lhes a livre disposição doseu salário e roubando-lhes, por isso mesmo, toda a esperança e toda a possibilidade deengrandecerem o seu património e melhorarem a sua situação.5. Mas, e isto parece ainda mais grave, o remédio proposto está em oposição flagrante com ajustiça, por-que a propriedade particular e pessoal é, para o homem, de direito natural. Há,efectivamente, sob este ponto de vista, uma grandíssima diferença entre o homem e os animaisdestituídos de razão. Estes não se governam a si mesmos; são dirigidos e governados pelanatureza, mediante um duplo instinto, que, por um lado, conserva a sua actividade sempre viva elhes desenvolve as forças; por outro, provoca e circunscreve ao mesmo tempo cada um dos seusmovimentos. O primeiro instinto leva-os à conservação e à defesa da sua própria vida; o segundo,à propagação da espécie; e este duplo resultado obtêm-no facilmente pelo uso das coisaspresentes e postas ao seu alcance. Por outro lado, seriam incapazes de transpor esses limites,porque apenas são movidos pelos sentidos e por cada objecto particular que os sentidospercebem. Muito diferente é a natureza humana. Primeiramente, no homem reside, em suaperfeição, toda a virtude da natureza sensitiva, e desde logo lhe pertence, não menos que a esta,gozar dos objectos físicos e corpóreos. Mas a vida sensitiva mesmo que possuída em toda a suaplenitude, não só não abraça toda a natureza humana, mas é-lhe muito inferior e própria para lheobedecer e ser-lhe sujeita. O que em nós se avantaja, o que nos faz homens, nos distingueessencialmente do animal, é a razão ou a inteligência, e em virtude desta prerrogativa devereconhecer-se ao homem não só a faculdade geral de usar das coisas exteriores, mas ainda odireito estável e perpétuo de as possuir, tanto as que se consomem pelo uso, como as quepermanecem depois de nos terem servido.Uso comum dos bens criados e propriedade particular delesUma consideração mais profunda da natureza humana vai fazer sobressair melhor ainda estaverdade. O homem abrange pela sua inteligência uma infinidade de objectos, e às coisaspresentes acrescenta e prende as coisas futuras; além disso, é senhor das suas acções; também4sob a direcção da lei eterna e sob o governo universal da Providência divina, ele é, de algummodo, para si a sua lei e a sua providência. É por isso que tem o direito de escolher as coisas quejulgar mais aptas, não só para prover ao presente, mas ainda ao futuro. De onde se segue quedeve ter sob o seu domínio não só os produtos da terra, mas ainda a própria terra, que, pela suafecundidade, ele vê estar destinada a ser a sua fornecedora no futuro. As necessidades dohomem repetem-se perpetuamente: satisfeitas hoje, renascem amanhã com novas exigências.Foi preciso, portanto, para que ele pudesse realizar o seu direito em todo o tempo, que a naturezapusesse à sua disposição um elemento estável e permanente, capaz de lhe fornecerperpetuamente os meios. Ora, esse elemento só podia ser a terra, com os seus recursos semprefecundos. E não se apele para a providência do Estado, porque o Estado é posterior ao homem, eantes que ele pudesse formar-se, já o homem tinha recebido da natureza o direito de viver eproteger a sua existência. Não se oponha também à legitimidade da propriedade particular o factode que Deus concedeu a terra a todo o género humano para a gozar, porque Deus não aconcedeu aos homens para que a dominassem confusamente todos juntos. Tal não é o sentidodessa verdade. Ela significa, unicamente, que Deus não assinou uma parte a nenhum homem emparticular, mas quis deixar a limitação das propriedades à indústria humana e às instituições dospovos. Aliás, posto que dividida em propriedades particulares, a terra não deixa de servir àutilidade comum de todos, atendendo a que não há ninguém entre os mortais que não sealimente do produto dos campos. Quem os não tem, supre-os pelo trabalho, de maneira que sepode afirmar, com toda a verdade, que o trabalho é o meio universal de prover às necessidadesda vida, quer ele se exerça num terreno próprio, quer em alguma parte lucrativa cujaremuneração, sai apenas dos produtos múltiplos da terra, com os quais ela se comuta. De tudoisto resulta, mais uma vez, que a propriedade particular é plenamente conforme à natureza. Aterra, sem dúvida, fornece ao homem com abundância as coisas necessárias para a conservaçãoda sua vida e ainda para o seu aperfeiçoamento, mas não poderia fornecê-las sem a cultura esem os cuidados do homem. Ora, que faz o homem, consumindo os recursos do seu espírito e asforças do seu corpo em procurar esses bens da natureza? Aplica, para assim dizer, a si mesmo aporção da natureza corpórea que cultiva e deixa nela como que um certo cunho da sua pessoa, aponto que, com toda a justiça, esse bem será possuído de futuro como seu, e não será lícito aninguém violar o seu direito de qualquer forma que seja.A propriedade sancionada pelas leis humanas e divinasA força destes raciocínios é duma evidência tal, que chegamos a admirar como certos partidáriosde velhas opiniões podem ainda contradizê-los, concedendo sem dúvida ao homem particular ouso do solo e os frutos dos campos, mas recusando-lhe o direito de possuir, na qualidade deproprietário, esse solo em que edificou, a porção da terra que cultivou. Não vêem, pois, quedespojam assim esse homem do fruto do seu trabalho; porque, afinal, esse campo amanhadocom arte pela mão do cultivador, mudou completamente de natureza: era selvagem, ei-loarroteado; de infecundo, tornou-se fértil; o que o tornou melhor, está inerente ao solo e confunde-se de tal forma com ele, que em grande parte seria impossível separá-lo. Suportaria a justiça que5um estranho viesse então a atribuir-se esta terra banhada pelo suor de quem a cultivou? Damesma forma que o efeito segue a causa, assim é justo que o fruto do trabalho pertença aotrabalhador.É, pois, com razão, que a universalidade do género humano, sem se deixar mover pelas opiniõescontrárias dum pequeno grupo, reconhece, considerando atentamente a natureza, que nas suasleis reside o primeiro fundamento da repartição dos bens e das propriedades particulares; foi comrazão que o costume de todos os séculos sancionou uma situação tão conforme à natureza dohomem e à vida tranquila e pacífica das sociedades. Por seu lado, as leis civis, que recebem oseu valor(1), quando são justas, da lei natural, confirmam esse mesmo direito e protegem-no pelaforça. Finalmente, a autoridade das leis divinas vem pôr-lhe o seu selo, proibindo, sob perlagravíssima, até mesmo o desejo do que pertence aos outros: «Não desejarás a mulher do teupróximo, nem a sua casa, nem o seu campo, nem o seu boi, nem a sua serva, nem o seujumento, nem coisa alguma que lhe pertença» (2) .A família e o Estado6. Entretanto, esses direitos, que são inatos a cada homem considerado isoladamente,apresentam-se mais rigorosos ainda, quando se consideram nas suas relações e na sua conexãocom os deveres da vida doméstica. Ninguém põe em dúvida que, na escolha dum género de vida,seja lícito cada um seguir o conselho de Jesus Cristo sobre a virgindade, ou contrair um laçoconjugal. Nenhuma lei humana poderia apagar de qualquer forma o direito natural e primordial detodo o homem ao casamento, nem circunscrever o fim principal para que ele foi estabelecidodesde a origem: «Crescei e multiplicai-vos»(3). Eis, pois, a família, isto é, a sociedade doméstica,sociedade muito pequena certamente, mas real e anterior a toda a sociedade civil, à qual, desdelogo, será forçosamente necessário atribuir certos direitos e certos deveres absolutamenteindependentes do Estado. Assim, este direito de propriedade que Nós, em nome da natureza,reivindicamos para o indivíduo, é preciso agora transferi-lo para o homem constituído chefe defamília. Isto não basta: passando para a sociedade doméstica, este direito adquire aí tanto maiorforça quanto mais extensão lá recebe a pessoa humana.A natureza não impõe somente ao pai de família o dever sagrado de alimentar e sustentar seusfilhos; vai mais longe. Como os filhos reflectem a fisionomia de seu pai e são uma espécie deprolongamento da sua pessoa, a natureza inspira-lhe o cuidado do seu futuro e a criação dumpatrimónio que os ajude a defender-se, na perigosa jornada da vida, contra todas as surpresas damá fortuna. Mas, esse património poderá ele criá-lo sem a aquisição e a posse de benspermanentes e produtivos que possam transmitir-lhes por via de herança?Assim como a sociedade civil, a família, conforme atrás dissemos, é uma sociedade propriamentedita, com a sua autoridade e o seu governo paterno, é por isso que sempre indubitavelmente naesfera que lhe determina o seu fim imediato, ela goza, para a escolha e uso de tudo o que exigem [ Pobierz całość w formacie PDF ]
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//-->A Santa SéCARTA ENCÍCLICA«RERUMNOVARUM»DO SUMO PONTÍFICEPAPA LEÃO XIIIA TODOS OS NOSSOS VENERÁVEISIRMÃOS, OS PATRIARCAS,PRIMAZES, ARCEBISPOSE BISPOS DO ORBE CATÓLICO,EM GRAÇA E COMUNHÃOCOM A SÉ APOSTÓLICASOBRE A CONDIÇÃO DOS OPERÁRIOS INTRODUÇÃO1. A sede de inovações, que há muito tempo se apoderou das sociedades e as tem numa agitação febril, devia, tarde oucedo, passar das regiões da política para a esfera vizinha da economia social. Efectivamente, os progressosincessantes da indústria, os novos caminhos em que entraram as artes, a alteração das relações entre os operários e ospatrões, a influência da riqueza nas mãos dum pequeno número ao lado da indigência da multidão, a opinião enfim maisavantajada que os operários formam de si mesmos e a sua união mais compacta, tudo isto, sem falar da corrupção doscostumes, deu em resultado final um temível conflito.Por toda a parte, os espíritos estão apreensivos e numa ansiedade expectante, o que por si só basta pa ra mostrarquantos e quão graves interesses estão em jogo. Esta situação preocupa e põe ao mesmo tempo em exercício o géniodos doutos, a prudência dos sábios, as deliberações das reuniões populares, a perspicácia dos legisladores e osconselhos dos governantes, e não há, presentemente, outra causa que impressione com tanta veemência o espíritohumano.É por isto que, Veneráveis Irmãos, o que em outras ocasiões temos feito, para bem da Igreja e da salvação comum doshomens, em Nossas Encíclicas sobreasoberania política, a liberdade humana, a constituição cristã dos2Estados (1) e outros assuntos análogos, refutando, segundo Nos pareceu oportuno, as opiniõeserróneas e falazes, o julgamos dever repetir hoje e pelos mesmos motivos, falando-vos daCondição dos Operários. Já temos tocado esta matéria muitas vezes, quando se Nos temproporcionado o ensejo; mas a consciência do Nosso cargo Apostólico impõe-Nos como umdever tratá-la nesta Encíclica mais explicitamente e com maior desenvolvimento, a fim de pôr emevidência os princípios duma solução, conforme à justiça e à equidade. O problema nem é fácilde resolver, nem isento de perigos. E difícil, efectivamente, precisar com exactidão os direitos eos deveres que devem ao mesmo tempo reger a riqueza e o proletariado, o capital e o trabalho.Por outro lado, o problema não é sem perigos, porque não poucas vezes homens turbulentos eastuciosos procuram desvirtuar-lhe o sentido e aproveitam-no para excitar as multidões efomentar desordens.Causas do conflito2. Em todo o caso, estamos persuadidos, e todos concordam nisto, de que é necessário, commedidas prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a queeles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida. O séculopassado destruiu, sem as substituir por coisa alguma, as corporações antigas, que eram paraeles uma protecção; os princípios e o sentimento religioso desapareceram das leis e dasinstituições públicas, e assim, pouco a pouco, os trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-sevisto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça dumaconcorrência desenfreada. A usura voraz veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitasvezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser praticada sob outra forma por homensávidos de ganância, e de insaciável ambição. A tudo isto deve acrescentar-se o monopólio dotrabalho e dos papéis de crédito, que se tornaram o quinhão dum pequeno número de ricos e deopulentos, que impõem assim um jugo quase servil à imensa multidão dos proletários.A solução socialista3. Os Socialistas, para curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra os quepossuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que osbens dum indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua administração deve voltarpara - os Municípios ou para o Estado. Mediante esta transladação das propriedades e esta igualrepartição das riquezas e das comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser capazde pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Pelo contrário, ésumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado etender para a subversão completa do edifício social.A propriedade particular34. De facto, como é fácil compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quemexerce uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador, é conquistar um bem quepossuirá como próprio e como pertencendo-lhe; porque, se põe à disposição de outrem as suasforças e a sua indústria, não é, evidentemente, por outro motivo senão para conseguir com quepossa prover à sua sustentação e às necessidades da vida, e espera do seu trabalho, não só odireito ao salário, mas ainda um direito estrito e rigoroso para usar dele como entender. Portanto,se, reduzindo as suas despesas, chegou a fazer algumas economias, e se, para assegurar a suaconservação, as emprega, por exemplo, num campo, torna-se evidente que esse campo não éoutra coisa senão o salário transformado: o terreno assim adquirido será propriedade do artistacom o mesmo título que a remuneração do seu trabalho. Mas, quem não vê que é precisamentenisso que consiste o direito da propriedade mobiliária e imobiliária? Assim, esta conversão dapropriedade particular em propriedade colectiva, tão preconizada pelo socialismo, não teria outroefeito senão tornar a situação dos operários mais precária, retirando-lhes a livre disposição doseu salário e roubando-lhes, por isso mesmo, toda a esperança e toda a possibilidade deengrandecerem o seu património e melhorarem a sua situação.5. Mas, e isto parece ainda mais grave, o remédio proposto está em oposição flagrante com ajustiça, por-que a propriedade particular e pessoal é, para o homem, de direito natural. Há,efectivamente, sob este ponto de vista, uma grandíssima diferença entre o homem e os animaisdestituídos de razão. Estes não se governam a si mesmos; são dirigidos e governados pelanatureza, mediante um duplo instinto, que, por um lado, conserva a sua actividade sempre viva elhes desenvolve as forças; por outro, provoca e circunscreve ao mesmo tempo cada um dos seusmovimentos. O primeiro instinto leva-os à conservação e à defesa da sua própria vida; o segundo,à propagação da espécie; e este duplo resultado obtêm-no facilmente pelo uso das coisaspresentes e postas ao seu alcance. Por outro lado, seriam incapazes de transpor esses limites,porque apenas são movidos pelos sentidos e por cada objecto particular que os sentidospercebem. Muito diferente é a natureza humana. Primeiramente, no homem reside, em suaperfeição, toda a virtude da natureza sensitiva, e desde logo lhe pertence, não menos que a esta,gozar dos objectos físicos e corpóreos. Mas a vida sensitiva mesmo que possuída em toda a suaplenitude, não só não abraça toda a natureza humana, mas é-lhe muito inferior e própria para lheobedecer e ser-lhe sujeita. O que em nós se avantaja, o que nos faz homens, nos distingueessencialmente do animal, é a razão ou a inteligência, e em virtude desta prerrogativa devereconhecer-se ao homem não só a faculdade geral de usar das coisas exteriores, mas ainda odireito estável e perpétuo de as possuir, tanto as que se consomem pelo uso, como as quepermanecem depois de nos terem servido.Uso comum dos bens criados e propriedade particular delesUma consideração mais profunda da natureza humana vai fazer sobressair melhor ainda estaverdade. O homem abrange pela sua inteligência uma infinidade de objectos, e às coisaspresentes acrescenta e prende as coisas futuras; além disso, é senhor das suas acções; também4sob a direcção da lei eterna e sob o governo universal da Providência divina, ele é, de algummodo, para si a sua lei e a sua providência. É por isso que tem o direito de escolher as coisas quejulgar mais aptas, não só para prover ao presente, mas ainda ao futuro. De onde se segue quedeve ter sob o seu domínio não só os produtos da terra, mas ainda a própria terra, que, pela suafecundidade, ele vê estar destinada a ser a sua fornecedora no futuro. As necessidades dohomem repetem-se perpetuamente: satisfeitas hoje, renascem amanhã com novas exigências.Foi preciso, portanto, para que ele pudesse realizar o seu direito em todo o tempo, que a naturezapusesse à sua disposição um elemento estável e permanente, capaz de lhe fornecerperpetuamente os meios. Ora, esse elemento só podia ser a terra, com os seus recursos semprefecundos. E não se apele para a providência do Estado, porque o Estado é posterior ao homem, eantes que ele pudesse formar-se, já o homem tinha recebido da natureza o direito de viver eproteger a sua existência. Não se oponha também à legitimidade da propriedade particular o factode que Deus concedeu a terra a todo o género humano para a gozar, porque Deus não aconcedeu aos homens para que a dominassem confusamente todos juntos. Tal não é o sentidodessa verdade. Ela significa, unicamente, que Deus não assinou uma parte a nenhum homem emparticular, mas quis deixar a limitação das propriedades à indústria humana e às instituições dospovos. Aliás, posto que dividida em propriedades particulares, a terra não deixa de servir àutilidade comum de todos, atendendo a que não há ninguém entre os mortais que não sealimente do produto dos campos. Quem os não tem, supre-os pelo trabalho, de maneira que sepode afirmar, com toda a verdade, que o trabalho é o meio universal de prover às necessidadesda vida, quer ele se exerça num terreno próprio, quer em alguma parte lucrativa cujaremuneração, sai apenas dos produtos múltiplos da terra, com os quais ela se comuta. De tudoisto resulta, mais uma vez, que a propriedade particular é plenamente conforme à natureza. Aterra, sem dúvida, fornece ao homem com abundância as coisas necessárias para a conservaçãoda sua vida e ainda para o seu aperfeiçoamento, mas não poderia fornecê-las sem a cultura esem os cuidados do homem. Ora, que faz o homem, consumindo os recursos do seu espírito e asforças do seu corpo em procurar esses bens da natureza? Aplica, para assim dizer, a si mesmo aporção da natureza corpórea que cultiva e deixa nela como que um certo cunho da sua pessoa, aponto que, com toda a justiça, esse bem será possuído de futuro como seu, e não será lícito aninguém violar o seu direito de qualquer forma que seja.A propriedade sancionada pelas leis humanas e divinasA força destes raciocínios é duma evidência tal, que chegamos a admirar como certos partidáriosde velhas opiniões podem ainda contradizê-los, concedendo sem dúvida ao homem particular ouso do solo e os frutos dos campos, mas recusando-lhe o direito de possuir, na qualidade deproprietário, esse solo em que edificou, a porção da terra que cultivou. Não vêem, pois, quedespojam assim esse homem do fruto do seu trabalho; porque, afinal, esse campo amanhadocom arte pela mão do cultivador, mudou completamente de natureza: era selvagem, ei-loarroteado; de infecundo, tornou-se fértil; o que o tornou melhor, está inerente ao solo e confunde-se de tal forma com ele, que em grande parte seria impossível separá-lo. Suportaria a justiça que5um estranho viesse então a atribuir-se esta terra banhada pelo suor de quem a cultivou? Damesma forma que o efeito segue a causa, assim é justo que o fruto do trabalho pertença aotrabalhador.É, pois, com razão, que a universalidade do género humano, sem se deixar mover pelas opiniõescontrárias dum pequeno grupo, reconhece, considerando atentamente a natureza, que nas suasleis reside o primeiro fundamento da repartição dos bens e das propriedades particulares; foi comrazão que o costume de todos os séculos sancionou uma situação tão conforme à natureza dohomem e à vida tranquila e pacífica das sociedades. Por seu lado, as leis civis, que recebem oseu valor(1), quando são justas, da lei natural, confirmam esse mesmo direito e protegem-no pelaforça. Finalmente, a autoridade das leis divinas vem pôr-lhe o seu selo, proibindo, sob perlagravíssima, até mesmo o desejo do que pertence aos outros: «Não desejarás a mulher do teupróximo, nem a sua casa, nem o seu campo, nem o seu boi, nem a sua serva, nem o seujumento, nem coisa alguma que lhe pertença» (2) .A família e o Estado6. Entretanto, esses direitos, que são inatos a cada homem considerado isoladamente,apresentam-se mais rigorosos ainda, quando se consideram nas suas relações e na sua conexãocom os deveres da vida doméstica. Ninguém põe em dúvida que, na escolha dum género de vida,seja lícito cada um seguir o conselho de Jesus Cristo sobre a virgindade, ou contrair um laçoconjugal. Nenhuma lei humana poderia apagar de qualquer forma o direito natural e primordial detodo o homem ao casamento, nem circunscrever o fim principal para que ele foi estabelecidodesde a origem: «Crescei e multiplicai-vos»(3). Eis, pois, a família, isto é, a sociedade doméstica,sociedade muito pequena certamente, mas real e anterior a toda a sociedade civil, à qual, desdelogo, será forçosamente necessário atribuir certos direitos e certos deveres absolutamenteindependentes do Estado. Assim, este direito de propriedade que Nós, em nome da natureza,reivindicamos para o indivíduo, é preciso agora transferi-lo para o homem constituído chefe defamília. Isto não basta: passando para a sociedade doméstica, este direito adquire aí tanto maiorforça quanto mais extensão lá recebe a pessoa humana.A natureza não impõe somente ao pai de família o dever sagrado de alimentar e sustentar seusfilhos; vai mais longe. Como os filhos reflectem a fisionomia de seu pai e são uma espécie deprolongamento da sua pessoa, a natureza inspira-lhe o cuidado do seu futuro e a criação dumpatrimónio que os ajude a defender-se, na perigosa jornada da vida, contra todas as surpresas damá fortuna. Mas, esse património poderá ele criá-lo sem a aquisição e a posse de benspermanentes e produtivos que possam transmitir-lhes por via de herança?Assim como a sociedade civil, a família, conforme atrás dissemos, é uma sociedade propriamentedita, com a sua autoridade e o seu governo paterno, é por isso que sempre indubitavelmente naesfera que lhe determina o seu fim imediato, ela goza, para a escolha e uso de tudo o que exigem [ Pobierz całość w formacie PDF ]